sexta-feira, 19 de abril de 2024

Chama

 


--- Bom dia ! Tudo bem ? O senhor quer que eu reze no senhor ?

                   A porta da enfermaria   abrira-se lentamente. Pela fresta apareceu o rosto sereno e angelical de uma senhora que aparentava seus setenta anos. A voz soava delicada, quase como um solfejo e pareceu amplificada pelo sorriso discreto, tranquilo e pouco forçado.

                   Apolônio ali estava deitado no leito desconfortável, de um lado cochilava sua esposa, na caminha baixa de acompanhante. A noite havia sido dura, como as das últimas duas semanas. Até àquele dia, tivera saúde de um touro miura. Aos sessenta e cinco nunca precisara procurar médico e ralhava dos colegas que viviam nas portas dos consultórios. Naquele dia, voltava do estádio, onde fora assistir ao jogo do seu time de coração, quando a dor lancinante lhe varou o espinhaço. E dali não mais arredou. A contragosto, procurou a emergência de um hospital próximo. Interno – e nem estrebuchou quando decidiram por isso—começou o périplo interminável de exames. Parecia uma ciática, até que a tomografia levou ao diagnóstico, fechado depois numa colonoscopia. Tratava-se de uma metástase na coluna de um câncer avançado que lhe invadira o intestino grosso. E ali estava ele, ainda com dores intermináveis, enquanto iniciava o tratamento de quimio e radioterapia.

                   A voz  que ecoou   no entreabrir da porta lhe trouxe, inexplicavelmente, um certo alívio. Apolônio, talvez por isso, abortou a negativa que já estava engatilhada. Era comunista de carteirinha e, montado no materialismo dialético, não acreditava em deus, santos, arcanjos, milagres e quejandos. Os últimos dias, no entanto, tinham sido tão sofridos que ele reconsiderou: Se bem não faz, mal não fará, ademais já estou aqui mais lascado do que faixo em noite de lua cheia! Sorriu de volta  para a senhora e disse:

-- Por que , não ? Não custa tentar !

                   A rezadeira entrou resoluta e sem muito estardalhaço. Ao pé da cama colocou um crucifixo. Trazia um galhinho de mato  na mão . Fechou os olhos como em transe, envergou o galho e passou a balbuciar algumas palavras quase que inaudíveis, com voz gutural. À medida que falava ia sacudindo o raminho  em movimentos rítmicos primeiro no rosto dele, depois nos ombros, no peito e, por fim, no baixo ventre. Vezes parecia-se ouvir as orações mais tradicionais: Credo, Ave-Maria, Pai Nosso. Depois de uns dez minutos, por fim, a oração deu-se por finda. A mulher abriu os olhos lentamente, mostrou-lhe o galho com flores totalmente murchas e o lançou na lixeira que estava guardada abaixo da cama.  Agradeceu pela oportunidade ainda com olhos lassos, desejou boa sorte ao doente de quem sequer conhecia o nome. Deu meia volta, após recolher o material que trouxera, para Apolônio e saiu cuidadosamente, sem barulho , para não despertar a esposa largada na cama que tentava recobrar as forças desprendidas no trabalho da noite.

                   Ele, depois,  nem contou à mulher da visita. A rezadeira não mais voltou. As dores continuaram atormentando Apolônio na sua via crucis, mas uma coisa inexplicável aconteceu. Desde aquele dia a família notou que o paciente estava mais sereno diante do sofrimento, a perspectiva do fim da estrada lhe parecia mais natural. Como uma borboleta que não se importava em queimar-se na luz da chama , pela simples certeza de banhar-se de luz.

Crato, 19/04/24

sexta-feira, 12 de abril de 2024

O Chocalho e o Gato


 

 

J. Flávio Vieira

 

                   Família de classe média, no Brasil, não tarda em virar condomínio. Os filhos mais velhos começam a casar, geralmente por algum acidente de percurso no namoro, e, ainda sem recursos para  voar com asas próprias, vão fazendo ninho na casa dos pais. De repente, espalham-se pela casa filhas com esposos, filhos e mulheres, rebentos que se vão multiplicando em meio a tias, tios, avós. Essa realidade faz com que primos se tornem irmãos e sejam criados juntos num grande rebanho, no mesmo terreiro, dividindo a mesma feira, os mesmos brinquedos, a mesma cozinha e , às vezes,  os mesmos quartos.

                   Essa história vem de uma dessas famílias de amigos nossos que, em Recife, precisaram compartilhar o mesmo apartamento com a filharada e a netarada. Eram mais de dez primos, em escadinha,  imprensados num mesmo Ap de três quartos minúsculos. Salvo as escaramuças esperáveis, a convivência entre eles tinha lá seus arranca-rabos mas não se transformara num Hamas X Israel. Havia uma única exceção. A meninada dividia-se entre cinco e dez aninhos, mas havia um dos primos mais taludo que, com cara pinicada de espinhas, já completara quinze . Chamava-se Robledo , nome que por si só já soava como uma ameaça, ema espécie de teje preso. E, montado no corcel arisco da adolescência, ele achava-se superior aos outros, uma espécie de general entre os samangos. No  almoço assumia o direito de pegar o pedaço maior  da mistura, nos jogos roubava como um político e não se conformava em perder uma partida sequer e, o mais grave, detinha o controle da televisão e impedia a turma de escolher os programas preferidos que, claro, tinham lá suas especificidades para cada faixa etária. Brigas e discussões aconteciam frequentemente, mas o grandalhão, sojigava a todos com seu tope mais atlético e seus pesqueiros. Dia após dia a situação foi se tornando insuportável. A meninada mais nova esperou, o momento  do fortão sair para a escola e , numa assembleia participativa, pôs em pauta o grave problema do autoritarismo do primo mais velho. Em comum acordo, depois de amplo debate, resolveram:

                   --Só há uma solução,  temos que matar Robledo!

                   A partir daí armaram o plano. Quando ele chegasse de tardezinha  e desse de garra do Controle Remoto, Severino, o Biu,  de 09 anos, avançaria sobre ele, na tentativa de resgatar   o instrumento, mas antes lançaria o grito de guerra: atacar ! Aí Pedro viria com um cabo de vassoura,  Cristino com um canivete, Alice com a trave da porta, Sabino com o facão rabo de galo, Honório atacaria com a baladeira, Lys com a frigideira, Hortêncio atiraria com seu bodoque, Lurdinha, Jaime e Naldo lançariam pedras no pé do ouvido de Robledo. Até ensaiaram o motim que redundaria, finalmente, na queda do ditador e na liberdade, ainda que tardia, da primarada.

                   À medida que se aproximava a hora provável do retorno do tirano, apesar do preparo  psicológico e dos ensaios, notava-se um ar de medo e apreensão nos meninos, aquele mesmo que invadiu os soldados  aliados, no Dia D. Pareciam manifestantes diante de Xandão. Quando  , por fim, viram o trinco da porta se mexer, conforme ensaiado previamente, os primos se esconderam em diferentes lugares próximos à sala, com armas nas mãos. Todos a postos.  Biu deitou-se , folgadamente no sofá, segurando o controle,  e aguardou o momento de dar o bote. Robledo entrou e já partiu para cima, tomando o remoto:

                   -- Decá isso aqui, seu mané. É meu !

                   Num salto de gato, Biu voou em cima dele, tomou o controle e, conforme combinado, deu o berro  de guerra:

                   -- Atacar !

                   Como não visse qualquer reação, repetiu umas três vezes, enquanto corria  na sala, tendo um Robledo, de dentes trincados, no seu encalço.

                   -- Atacar ! Atacar ! Atacar !

                   A operação de guerra parou no grito de Severino. Primeiro no de atacar, depois no de chorar com o tabefe  fenomenal que levara de Robledo, antes de arrancar-lhe o artefato de sua mão.  O exército amarelou e o grande plano ficou apenas no planejamento.

                   No futuro Severino descobriria que a famosa operação Mata-Robledo havia sido apenas um pequeno experimento do que acontece, a todo instante,  na vida real. A grande distância que separa a ideia genial de sua execução prática. Fiéis até tinham planos engenhosos de salvar Jesus da cruz;  Tiradentes aguardou as forças rebeldes que o resgatariam da forca; Frei Caneca esperou os amigos revolucionários equatorianos que o salvariam do fuzilamento; Bolsonaro acredita que a boiada vai soltá-lo da prisão. No Brasil há sempre mais ideias geniais do que voluntários que as apliquem.  Há gatos e chocalhos demais na praça , o problema é que ninguém sabe como amarrar no pescoço do bichano.

Crato, 12/04/24  

                             

                           

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Dias de Verdade

 


 

            “Nem todas as verdades são para todos os ouvidos”

                                                                   Umberto Eco

 

                               O  primeiro de abril carrega consigo dois carmas fatídicos. Um deles flutuando no ramo do folclore: o Dia da Mentira. O outro, bem mais tenebroso, marca os sessenta anos da Ditadura Militar de 1964, um pesadelo que perdurou por vinte e um anos e que, como uma praga mal resolvida, continua, de vez enquanto,  a nos assombrar. Este ano   quebramos a tradição :  o  Dia da Mentira folclórico e histórico desmoronou . Esta realidade caiu por terra, com a inauguração do Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo fundado há exatos dois anos. Uma obra gigantesca, ainda em processo de edificação, englobando o antigo Hospital Manuel de Abreu e entorno. E ali brilha aos nossos olhos aquilo que , aqui, transformou em Verdade o farsante primeiro de abril. Uma galeria de arte vultosa, com exposições temporárias e permanentes; uma Teatro com setecentos lugares; um Terreiro imenso para manifestações de cultura de tradição; um Teatrinho de bolso moderno e sofisticado ; um outro pátio aconchegante com palco acessório; uma vasta área para residentes do Centro; um Planetário; um titânico terreiro para esportes vários e uma colossal área de lazer com jardins,  que tem acolhido, a cada fim de semana,  mais de 3000 caririenses em seu sombreado arvoredo.

                   A programação nestes dois anos, mesmo convivendo ainda com os trâmites da construção, é de encher os olhos. Música ; Artes Cênicas; Cinema; Festivais de Música envolvendo artistas nacionais e do Cariri; terreiradas; Oficinas; exposições de Artes Plásticas e Fotografia; Contações de Histórias; Saraus Literários; Projetos de Incentivo à Leitura desfilaram numa lista extensa e diversificada que abriu um leque enorme de possibilidades inclusivas até então inexistentes na região. E desde o seu nascedouro, no  desenrolar da construção, preocupou-se o Centro em incluir os próprios trabalhadores como obreiros, sim,  mas, também, usuários do  empreendimento que edificavam com suas mãos calejadas. Um projeto tocado por Luiz Santos e Carlos Henrique fez com que , através de xilogravuras, shows e fotografias, os trabalhadores passassem  a ter vida, voz e holofotes.  O Centro Cultural Sérvulo Esmeraldo, em apenas dois anos, virou nossa acrópole, o outeiro donde podemos ter uma visão em grande angular da região e , ao mesmo tempo, um zoom de nós mesmos.

                   Claro que uma obra de tamanha envergadura cria, imediatamente, ciumeiras e polêmicas. Alguém já disse que só se atira pedra em árvore que dá bons frutos. Num país tão polarizado,  setores ultraconservadores facilmente criminalizam a Cultura. Ali devia ter sido feito era um hospital ! Deviam ter era reinaugurado o antigo Seminário ! E isso acontece por uma razão bem simples: a Cultura é a trincheira final contra o despotismo. O maior inimigo do fascista é um povo culto,  educado e esclarecido. Cultura é luz e os déspotas, como os lobisomens, precisam  da treva para existirem.  

                   Controvérsias entre grupos artísticos e as administrações; queixas e reclamos de espaço entre locais e forasteiros  fazem parte inerente da efervescência de qualquer movimento cultural. São ondas tectônicas de acomodação e, em nenhum momento, tiram a importância inequívoca de um Centro Cultural que hoje, certamente, é um dos mais profícuos e importantes do interior do Nordeste.

                   O Cariri tem uma dívida  eterna para com o governador Camilo Santana,  o mentor do  Sérvulo Esmeraldo , um  dos políticos mais importantes do país. É preciso, ainda , agradecer a Tiago Santana do Instituto Mirante, a Rosely Nakagawa e a Allan, Fabiana, Ana Lúcia   e todos aqueles que fazem a gestão do Centro Cultural, com tanto esmero e tanta dedicação. Aos que criticam o empreendimento basta lembrar que, em nenhum momento ele mudou, historicamente, sua característica: Seminário, Hospital e , hoje, Centro Cultural , continua a sua missão de cultivar e revolver o terreno do Sagrado.   A Cultura caririense em breve poderá ser separada em dois momentos históricos: a.C. e d.C. ( antes e depois do Centro).

                   Parabéns ao Centro Cultural pelo aniversário  de hoje que marca  incontáveis outros que virão. Aos renitentes que continuam celebrando o antigo primeiro de abril, convidamos para visitar o Sérvulo Esmeraldo. Ali poderão abrir os ouvidos para as novas verdades que ressoam  não mais como impropérios, ranço, ódio e mexericos, mas como música.

 

Crato, 04/04/2024